Ou não
Roupas imigrantes, guarda roupa flutuante. Na década de noventa essa assim, roupa de inverno era roupa de inverno. Roupa de verão era roupa de verão e era preciso fazer conexão. Ou baldeação, como diz minha vó.
Terminava o verão e lá se iam as saias, vestidos e blusinhas lavados especialmente para o Dia Mundial da Troca de Prateleiras para cima da cama. Depois os casacos, fusôs (aquelas calças de lã justérrimas que nos aproximavam das minhocas, lembra?), blusões, toucas e luvas coloridas para a máquina de lavar. Eu ficava sentada impaciente na cama ou assistia e zilhonésima reprise do Castelo enquanto a mamis dava indicações, empolgadíssima, para a empregada da vez.
- Tira todas as roupas de inverno e põe para lavar.
- Passa um pano nessas prateleiras.
- Agora coloca as roupas de verão lá no alto.
- Depois tu traz as de inverno e coloca aqui, bem na frente, tá?
- Tá.
Resumo da ópera. Quando era inverno se usava roupas para o frio que ficavam nas prateleiras mais próximas da altura do dono enquanto as peças fresquinhas descansavam no alto do armário. Chegava o calor e invertia-se a função. Na mudança de estação o primeiro passo era “baixar” as roupas.
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Meu armário deixou de ser flutuante há tempos. Primeiro porque não tenho empregada nem paciência. Mas, mais importante, porque agora as estações é que são flutuantes. Canso de sair com uma pashmina (aquelas mantas compridas e fininhas que vendem a preço de banana no mercado das pulgas de Madrid) e um óculos escuro na mesma bolsa de verão. Nos momentos “queria ter nascido na España” ainda me atrevo a carregar um leque junto. Só pra fazer charme e ficar com dor no braço, confesso. No inverno preciso colocar uma blusinha apresentável por baixo de toda a roupa porque o ar-condicionado esquenta tudo. No calorão, gela até eu precisar duma pashmina ou dum casaco.
Esses tempos, quando escrevia uma materinha de clima em que precisava explicar uma mudança brusca e atípica na temperatura escrevi algo como: será preciso baixar as roupas do armário. Ai, como queria que aquilo fosse publicado no jornal! Aposto que muitas pessoas se identificariam com o processo de baldeação. Ou não. Ninguém mais baixa nada de armário nenhum nem sente saudades das roupas. Lembro de morrer de saudade duma calça jeans na praia ou de uma sandália rasteira no meio de agosto. Hoje as roupas ficam misturadas o ano todo, flutuando naquela muvuca em que sempre se perde o que se precisa. Talvez, meio como a gente nesse mundo estranho. Flutuando numa muvuca, vira e mexe perdemos o que tanto buscamos.