domingo, 2 de maio de 2010

Desabafo - Os trapos e a Quitéria


Os trapos e a Quitéria


Todos que conhecem a minha casa – em Porto Alegre – ouvem um estranho e sincero comentário antes de eu abrir a porta.

_ É tudo muito gay.

Gay (muito gay, homossexual e variantes) é uma expressão cunhada pelo meu amigo Humberto Ferreira. Mesmo ele detendo os direitos de uso, eu abuso dela desde a primeira vez que eu ouvi um, Mari tu é muito gay.

No tempo em que o nosso grande problema era ter aula o dia todo só na segunda-feira, aguentar uma cadeira de Psicologia e enfrentar a Física para fazer a faculdade que fazia nossos olhos se arregalarem, meu companheiro era o Humberto. Entre tantos amigos – que ficaram em 2005 ou não – era do lado dele que eu sentava todos os dias, suportava o barulho repetitivo da sua bateria imaginária, dividia os fones de ouvido e as agruras de quem tem 16 anos. Também era pra ele que eu mostrava empolgada um novo estojo da Hello Kitty, uma bolsa rosa pink, uma meia de sapo ou um mini moletom de gatinho.

Cansado com tamanha frescurice, o Humberto decidiu. Dizer que eu era fresca era pouco. Dizer que eu era infantil não servia para a amiga que discutia política com ele. Dizer que eu era pati não combinava com a guria que queria passar na federal pra deixar o mundo menos díspare. E dizer que eu era vazia também não funcionava para quem morria de amores por um Machado de Assis.

A questão era complexa e simples. Em dois toques, ou melhor, uma palavra, ele resolveu.

Gay.

Eu não só concordei como colaborei pra cunhar a expressão. Eu realmente era gay. E todos os meus queridos que ouvem – incluindo aí meus pais – concordam que ela se encaixa perfeitamente comigo. E é tão perfeita que não carrega um mísero preconceito, podem ter certeza.

Bom, desde que eu cravei meu nome no listão e larguei o Noroeste, o rol de coisas gays que eu compro tem aumentado consideravelmente. Os objetos de decoração entraram de forma fervorosa na minha lista. Assim, três anos, um salário e um apartamento só meu depois, a taxa de homessexualidade está altíssima.

Além de um tapete rosa pink peludo, outro de zebra e uma chaleira de girafa, o 602 tem porta-retrato de pelúcia com asas, fusquinha que segura os jornais e uma mão que sustenta a porta. Descontando uma almofada-vaca, um tapete-borboleta e uma geladeira que permite desenhos e recados dos amigos. Pode dizer que é uma fauna, um carnaval ou o que seja. Eu não contei que fiz patchwork nos bancos da sala, adicionei fitinhas do bom fim e mandei pintar uma cadeira de cada cor (lindas!). E não precisa perguntar, meus olhos não doem com tanta cor nem mesmo nas crises de sinusite. Eu adoro meu canto, principalmente a poltrona estampada de jornal, a almofada-ouriço, meu Neruda e meu Miró.

Minha prima Alice, quando conheceu meu reduto, adorou. Ela tem seis anos e, acredito, se sentiu um pouco representada aqui. Assim como eu e minhas homossexualidades.

Bom, mas o que desencadeou esse monte de abobrinhas foi o comentário de uma amiga que já tem 30 anos, namora há alguns e, enfim, tem enfrentado os questionamentos sobre uma união “mais estável”. Suscinta e genial que é, ela disse:

- Pois é óbvio que eu quero juntar os trapos, mas gosto tanto do meu canto que ahhh.

Ahhh mesmo. Ahhh que dúvida. Ahhh como faz?

Eu, que também quero juntar os trapos um dia – sabe-se lá quando e com quem –, fiquei com aquela frase saltitando na caixola. Que farei com meus trapos gays? Eu sou tão feliz com eles, serei feliz em uma casa com cara de homem? Nem falo com cara de showroom, porque essa possibilidade está descartada. Ou encontrarei alguém – nesse mercado escasso – que me deixe colocar um porta-retrato com asas na sala? E a Quitéria? Meu pufe não é nada sem a Quitéria, muito menos a minha sala!

O fato é que meu alerta aos que encaram a minha nave tem funcionado. Todos concordam com a expressão e com a minha alegria em conviver com tanta diversidade. E, como continuo longe da dita união mais estabilizada, guardo meus ahhhs enquanto curto as gayzices da casa.

Ahhh, não expliquei. A Quitéria é a prima da Celeste. Sim, a do Castelo Rá-Tim-Bum. Linda e simpática, minha cobra pink de pelúcia mora em cima do pufe da sala.