segunda-feira, 21 de junho de 2010

Devaneio - Hassen, as leis brasileiras e a Copa

Quem ler até o final compreenderá o porquê do "devaneio", garanto.


Devaneio - Hassen, as leis brasileiras e a Copa

Eu parecia navegar em uma jarra de sangria gelada, quando Sarah, a prima-irmã da Penélope Cruz, sorriu:

- Mariana, como és en Brasil?

Saí do Bairro Gótico em meio segundo e aterrissei. No final da aula, sempre líamos um artigo de ‘un periódico’ para debater.

Aquele dia o tema era aborto.

Depois de Hassen, o parisiense lindo e casado (!!!) de 26 anos, e da menina escocesa que estudava russo falarem, era minha vez.

Pensei, pensei e pensei. Sabia que eles não iam entender e decidi explicar igual, em portunhol.

- No si puede hacer un aborto, el gobierno no permite. Pero, és normal las mujeres abortaren en clinicas clandestinas. Algunas no pueden tener hijos después. Otras tenen problemas en utero. Toda la gente sabe que és prohibido, pero mucha gente hace.

Fiquei vermelha. Não sei se porque senti que todos me olhavam ou por vergonha mesmo. Hassen, ao meu lado, não resistiu. E eu sabia que não resistiria. Ele era o cara que fazia relações internacionais entre Paris e Madrid e desejava trabalhar na ONU.

- Si mutcha gente hace, entonces por que és prohibido?

Não sei Hassen. E queria saber. Tenho vergonha de te dizer com todas as letras que é proibido, as pessoas fazem e isso não muda nada. Nem deve mudar. Mas o lugar onde eu moro não é aquele do City of God nem o do Rio de Ránero. Há muito mais e, como una buena periodista, vou te dizer. Tem muita coisa no Brasil que é proibido e todo mundo faz. A gente costuma dizer que, certas coisas, não saem do papel. E sei que não há lógica nenhuma nisso.

- No hay sentido, Mariana?

O melhor espanhol que já ouvi – com sotaque francês – foi como uma agulha no meu ouvido.

- No, no hay.

Não satisfeita, no decorrer do curso, a nossa Penélope ainda propôs discussões sobre compra de remédios, educação/vestibular e salários mínimos. E, aviso, eu não detive minha sinceridade em nenhum momento.

Suas bolitas morenas estagnaram quando contei que na minha cidade eu podia comprar remédios sem receita e, tchan-tchan, por telefone.


Bom, enquanto grande parte do que acontece no Brasil não é, de verdade, obrigatório, surge uma luz. Ou um escuro.

No país do não pode, mas pode tudo passa, há uma só lei:

- Em jogo do Brasil na Copa do Mundo de Futebol ninguém pode trabalhar.

Muito menos ir à aula.

E, AI(!!), de quem ousar pensar em burlá-la.

Se for empregador, é desumano.

Se for empregado, não tem amor pelo país.

Se for professor. Ah, aí que o Brasil não tem mais jeito mesmo.

E foi assim que muita gente não trabalhou semana passada pra ver os amarelinhos correrem de luva em Joanesburgo.

Que fúria verde e amarela!

E, também foi assim, que decidi criar uma regra própria.

Não gosto de futebol e trabalho na Copa numa boa. Até na final.

Os gols eles repetem zilhões de vezes depois que acaba o jogo, comentam em detalhes e anos mais tarde tudo ainda vira um documentário pro meu irmão re-re-re-rever! Por que raios preciso assistir no momento exato?

Quero a minha dispensa pra ir na FLIP, a festa literária de Paraty no Rio de Janeiro.

A folga acadêmica pode ser para eu terminar meu Bauman ou minha nova edição do João do Rio. Também aceito não trabalhar nos dias do show do Los Hermanos na Bahia ou quando abrir uma exposição nova no Centre Pompidou, ok?

E, aaai, do professor que marcar prova nesses dias.

Não existe prova em dia de jogo do Brasil.

Logo, não existe prova em dia de FLIP. Quem dirá no capítulo final de uma Isabel Allende.

Regras são regras no país da desordem.

E, tenho certeza, Hassen não só concordaria como abriria um sorriso.

- Esso mí gusta, Mariana.

E, aos espertinhos, não. Não contei pra ele que em terras tupiniquins casados beijam solteiras e assim por diante.

Leis francesas, ele jamais diria um ‘oui’.