quarta-feira, 7 de abril de 2010

Desabafo - Trancoso


No ir e vir das minhas certezas.




Trancoso




Quando a mão dela tocou na maçaneta da porta, eu já sabia de que tipo se tratava. Com uma calça de marca, um tomara-que-caia preto e mechas californianas nos longos cabelos lisos, não poderia ser outra. O andar arrastado, a bolsa Vitor Hugo, o sotaque xarope e as unhas quase laranja. De perto, uma camada incrível de pó tentava esconder o que um dia foram erupções de hormônios adolescentes. Com os cílios levantados de forma organizada e os braços de quem passara três meses na praia, ela sentou-se.
- Tem o Trancoso, né?
- Oi Luiza.
- Eu preciso muito desse esmalte – disse ignorando qualquer cumprimento da manicure.
- O Trancoso acabou.
O grito que se seguiu fez com que a Kati errasse a pincelada roxa no meu dedão direito. Depois do desespero, ela virou o rosto para a dona do salão. Queria saber por que não tinha mais o Trancoso. Como assim? O que teria acontecido com o pequeno vidrinho laranja que ela usara na semana anterior. E, o mais importante, o que ela deveria fazer agora diante dessa tragédia. Recém acordada que eu estava, só entendi a séria questão quando a moçoila apontou uma solução.
- Vou ter que fazer o pé também, então. Tem horário?
Desloquei meus olhos para o pé 36 numa rasteira que não posso criticar -era roxa com tachinhas, linda – e entendi tudo. O tal laranja Trancoso (da coleção Praias do Brasil, é claro) reluzia nos dedinhos próximos à cadeira. Sem o laranja sociality para as mãos, os pés não poderiam ficar da cor que estavam. Mesmo impecavelmente feitos, ela os faria de novo. Tudo culpa do Trancoso. Ou melhor, da falta dele. Afinal, não usar a mesma cor de esmalte nas mãos e nos pés é um pecado mortal. Não concordam? (Vou chegar em casa e questionar minha mãe por não ter me repassado um conhecimento tão relevante quanto esse em vinte e um anos de existência: use sempre o mesmo esmalte em mãos e pés. Tá, enfim.)
Decidi não olhar os preparativos da função, apenas ouvir. O sotaque meloso já me cansava os ouvidos e desse eu não podia escapar. À contragosto da cliente, outra manicure aproximou-se e iniciou a retirada do Trancoso dos pés. Maria, a preferida de Luiza no salão, estava de férias e isso já se apresentara como outro problema grave. Um, dois, três e foi.
Quero o Atrevida, então. Tá no fim, vai ficar grosso. Ai, não acredito. Usa o Glamour Pink. Não gosto. Que tal o 40 graus? Não gosto. E o Copacabana? Horrível. Já sei, passa o Praia do Rosa. Tá, vou experimentar essa tal praia.
A-I-E, agora quem ficou tonta fui eu. Mas que guria pentelha, credo!

Eu tinha uns quatorze anos quando descobri o advento das manicures. Uma amiga indicou uma que além de ir em casa e ser mestre na arte, era uma santa criatura. A Ana entrou na minha vida assim. Era tão barato fazer francesinha, flores e viajar nas misturas que eu pagava com a minha mesada. Desde o início, porém, minha mãe assumiu um ar reticente quanto a isso. Nunca disse: não faz. Mas também nunca disse: que legal, faz mesmo. Ela me instruía a deixar tirar pouca cutícula, preferia os esmaltes claros e queria que eu soubesse dar um jeito sozinha nas unhas. Ao menos, de vez em quando. Morria de medo que eu dependesse de uma manicure. Justo ela que ama a unha curta e clarinha, só pintou de vermelho uma vez na vida e se preocupa com a ponta dos dedos quando tem casamento, via a filha crescer e descobrir os vermelhos em unhas longas. Herança da minha vó paterna, claro. Pois a mãe me convenceu a usar um tom claro na minha festa de quinze anos (grande feito, o vestido já era pink!) e não usar vermelho nos pés. Nunca passei e nem tenho vontade. Também acabou fazendo com que eu me defenda sem uma manicure-amiga. Assim, minhas unhas ficaram lindinhas quando eu estava na europa e na lagoa mirim. Mas, a primeira coisa que fiz quando cheguei foi ir até a manicure, óbvio.
Hoje, ela bem sabe o quanto eu sou mais feliz quando estou com as unhas feitinhas. E que isso não me torna uma alienada ou uma desaforada. Ir na manicure é uma terapia. Um momento só meu. Como ir no psicanalista, no jogo de futebol ou na natação para alguns. Quando não consigo, fico mesmo mais sem paciência com o mundo. As coisas já andam estranhas nesse planeta, ainda é preciso encará-lo com os dedos acabados? Demais pra mim.

Pois quando a Bete tirou um bife - bife não, bifinho – o que não é agradável, mas acontece nos mais renomados salões, a dita Luiza soltou a pior do dia.
- Ai, mulher. Que desgraçada que tu é – Sem nenhum tom de brincadeira.
Aproveitei que minhas unhas já estavam secas, me despedi das gurias, desejei bom final de semana e me mandei. Que vergonha! Como aquele ser poderia ser da mesma raça e do mesmo gênero que eu. Ainda morava na mesma cidade, frequentava o mesmo salão e tinha uma calça da colcci. E eu ainda gostara daquela rasteira! Saí pensando naquilo e quase dei com o rosto em um senhor e seu carrinho do Zaffari.
A tal Luiza explica um pouco da reticência da minha mãe com unhas, cutículas, esmaltes e manicures. Tenho certeza. Mas, nas palavras da dona Regina mesmo: aprenda com ela a não ser igual, Mari.
A pena é que gostava do nome Luiza e achava bonito o tal Trancoso. De verdade.

2 comentários:

Andressa disse...

Ai Mari, me identifiquei TANTO!
Saudade de ti!

Kauane Linassi Leite disse...

Terapia mesmo é poder "te ler", guria.
Tu faz mágica com essas palavrinhas.
Fico mais leve depois de passar por aqui, sabia?
Aaaah, que sensação boa.
Vou até fazer minhas unhas depois dessa.